a casa dos espíritos e morangos mofados.
realismo mágico e memória como palimpsestos do Cone Sul
Um aprofundamento subjetivo das ditaduras na América Latina, questionando como a literatura de memória sob o realismo mágico simboliza latinidade e seus trabalhos mnemônicos e qual o papel do bibliotecário na mediação dessas memórias traumáticas. Observa-se a humanidade lírica de memórias traumáticas ou subterrâneas, a ira feminina ou queer e a construção de memória, justiça e verdade na literatura de ficção.
1 INTRODUÇÃO
É preciso pensar na injustiça social: ao omitir, segregar ou se distanciar dos grupos sociais, sejam eles portadores das memórias que trabalham ou herdeiros desta memória compartilhada, a ficção pode acabar servindo mais ao esquecimento do que à lembrança. A memória fomenta o pertencimento, mas também faz-se como passado que nunca se foi, fixação ou retorno.
Maurice Halbwachs trabalhou com o conceito de “memória coletiva” que, além da memória individual, é construída pelo grupo ao longo dos anos à medida que suas histórias são recontadas e ajustadas à forma de uma memória coletiva, destacando como exemplo a memória nacional. Em divergência, o historiador Michel Pollak cunhou o conceito de “memórias subterrâneas”, que se encaixa no presente estudo.
Partindo do pressuposto de que o realismo mágico, como gênero literário, encerra questões basilares da latinidade e da história latino-americana, um palimpsesto inerente ao imaginário de utopias e distopias e revoluções, dialogando entre a realidade bruta (e brutal) do cotidiano e das estruturas sistêmicas. Este texto também destina-se a compreender as equivalências estéticas, visualizando a identidade como uma construção cinematográfica e a imagética afetiva contida nos fluxos informacionais como semiótica da cultura, assim, tendo como objetos de estudo os sujeitos leitores, o sujeito bibliotecário e o ponto de intermédio: literatura e memória.
Posto que a memória nacional/oficial constitui-se de um molde geopolítico com acúmulos aglutinados de traumas que repele a justiça transicional, considerando o estabelecimento de diálogos possíveis entre história e ficção, tendo como premissa a literatura como fonte para a história; a ficção movida pela história, a perspectiva. Em consonância com as biografias dos autores (a noção de sujeito, relativo à circunstância). Também serão considerados como fundamentais: a mentalidade da época, o texto em diálogo com a consciência histórica, os narradores como tradutores da mentalidade de sua época. Algumas das características do “realismo mágico” seriam: 1) a descrição da vida cotidiana agregando acontecimentos fantásticos e irreais; 2) o uso de imagens sintéticas no lugar de descrições verborrágicas, de modo a criar uma precisão lógica de apresentação do fantástico; 3) a tendência do desaparecimento da cronologia como ordenadora lógica dos acontecimentos da vida.
2 “SE AS GALINHAS PODEM ENFRENTAR O RAPOSO, O QUE É QUE DETÉM OS HOMENS?”
Em A Casa dos Espíritos, com uma narração em formato de memórias de uma família em que o tempo todo aborda trabalhos de memória, a personagem Clara escreve cadernos com histórias e detalhes da sua extraordinária vida cotidiana, chamados cadernos de anotar a vida, os quais em sua morte foram a herança que deixara no mundo além do seu próprio espírito: “Enchia incontáveis cadernos com anotações privadas, onde foram ficando registados os acontecimentos desse tempo, que graças a isso não se perderam apagados pela neblina do esquecimento, e que posso usar agora para recuperar a sua memória” (ALLENDE, 1995, p. 74). É dessa forma, postumamente, que sua neta e marido conseguem narrar décadas de memória familiar e de memórias subterrâneas, desenrolando a árvore genealógica e suas desventuras ao mesmo tempo que contextualizam cenários políticos do Chile. “Clara especulava que, se as loucuras se repetem na família, deverá ser porque existe uma memória genética que impede que se percam no esquecimento” (ALLENDE, 1995, p. 168).
O título do romance é representativo das relações domésticas e de um realismo mágico, mas vai além. Abordando a noção de espaço explorada por Gaston Bachelard (2008): todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores oníricos consoantes. Já não é em sua positividade que a casa é verdadeiramente “vivida”, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo um passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova. E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga memória. A casa, como o fogo, como a água, permitirá evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar. Bachelard (2008) recorda que, evocando as lembranças da casa, adiciona-se valores de sonho. O lugar como memória, como “quadros de vida” que se sucedem conforme o indivíduo se move no espaço. Nesse sentido, “pode-se dizer que o espaço é categoria da mediação na relação de experiência do corpo com o mundo por intermédio daquilo que é possível, portanto, vivenciável e experienciável: o lugar” (CHAVEIRO, 2012, p. 250). O lugar é onde a vida acontece, onde se dá a existência do mundo. E esses fatos existenciais e históricos decorrem da presença ativa dos corpos dos sujeitos do mundo que, nos lugares-territórios, experimentam a vida.
Dialogando com Bachelard, é válido afirmar que quanto mais mergulha-se no passado, mais aparece como indissolúvel o misto psicológico memória-imaginação. Para participar do existencialismo do poético, deve-se reforçar a união da imaginação com a memória, do sonho com o cotidiano e a experiência viva. Não é uma memória viva aquela que corre pela escada das datas sem desmoronar-se o suficiente nos sítios da lembrança. Para lá do pitoresco, os vínculos da alma humana e do mundo são fortes. Vive então em nós não uma memória de história, mas uma memória de cosmos. O sublime literário é simples, existe nas rupturas e margens, na confluência de memórias. Numa onírica narrativa histórica da formação das forças políticas no Chile, durante o século XX, A Casa dos Espíritos é protagonizado por quatro gerações de mulheres de nomes significativos: Nívea, Clara, com dons de clarividência, Blanca e Alba. “Recordava o passado como uma sucessão de violências, abandonos e tristezas e não estava segura de que as coisas tivessem sido como pensava.” (ALLENDE, 1995, p.310 ).
A autora é parente do ex-presidente socialista Salvador Allende, deposto e morto no Golpe Militar comandado pelo general e futuro ditador Augusto Pinochet em 1973, e aqui é possível traçar paralelos entre realidade e ficção. A história política do Chile, com a qual Isabel tem uma relação muito particular, é exposta em união com a luta por saúde, educação, alimentação, saneamento e infraestrutura que o povo vive cotidianamente. A obra foi baseada nas lembranças de sua infância e juventude passadas no velho casarão familiar, onde viviam seus avós e seus tios, rodeada de uma atmosfera liberal.
Pelo caminho, pude ver a cidade nos seus terríveis contrastes, as barracas cercadas por tapumes para dar a ilusão de não existirem, o centro compacto e cinzento, e o Bairro Alto, com os jardins ingleses, os parques, os arranha-céus de vidro e os meninos louros passeando de bicicleta. Até os cães me pareceram felizes, tudo em ordem, tudo limpo, tudo tranquilo e aquela sólida paz das consciências sem memória. Este bairro é como um outro país. (ALLENDE, 1995, p. 410).
Ressalta-se elementos como escrita, memória, sonho e espírito como basilares. Efemérides, cartas de morte, cartas de amor; o capítulo VIII, “O Conde”, começa assim: “esse período teria desaparecido na confusão das recordações antigas e apagadas pelo tempo, se não fossem as cartas que Clara e Blanca trocaram. Essa vasta correspondência preservou os acontecimentos, salvando-os da nebulosa dos factos improváveis” (ALLENDE, 1995, p. 265); horas antes de morrer, Clara ordenou seus papéis, tirando dos cantos perdidos os cadernos de anotar a vida; para registrar a época da decadência, Trueba narra: “não posso falar disso. Mas tentarei escrever” (ALLENDE, 1995, p. 315). É escrevendo o insólito que o mesmo não é esquecido.
Na passagem abaixo, Clara, que já havia falecido, aparece em sonho para Alba, incentivando-a a escrever quando a personagem se encontra nos porões da ditadura, em contrapartida ao porão em que brincava em sua infância e em que perdeu sua virgindade. O caleidoscópio da memória se faz e refaz, com lacunas, recalques, justaposições, configurações. A temporalidade se desfaz. A obra brinca com a memória, com o ser e com a experiência. A própria autora Isabel Allende lançou um livro contando sua história após sair de um coma, pois não sabia se sua memória voltaria.
Alba tentou obedecer à avó, mas logo que começou a apontar com o pensamento, o canil encheu-se de personagens da sua história, que entraram atropelando-se e envolvendo-a nas suas anedotas, nos seus vícios e virtudes, esmagando os seus propósitos documentais e deitando por terra o seu testemunho, intoxicando-a, exigindo-lhe, apurando-a, e ela anotava às pressas, desesperada, porque à medida que escrevia uma nova página, ia-se apagando a anterior. Esta atividade mantinha-a ocupada. A princípio, perdia o fio com facilidade e esquecia na mesma medida em que recordava novos fatos. A menor distração ou um pouco mais de medo ou de dor, emaranhavam-lhe a história como um novelo. Mas logo inventou um código para recordar com ordem, e então pôde entrar no seu próprio relato tão profundamente, que deixou de comer, de se coçar, de se cheirar, de se queixar, e chegou a vencer, uma por uma, as suas inúmeras dores (ALLENDE, 1995, p. 449).
Observa-se como o trabalho de memória é relegado às mulheres, juntamente com outras tarefas domésticas, sendo holisticamente a salvaguarda e gerenciamento de documentos, cartas, receitas e fotografias; quando a administração de lembranças recai sobre a figura feminina, principalmente das matriarcas latinas, estas organizam meticulosamente, por data e/ou contexto. Aqui, encontra-se também o conceito de “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo: uma escrita que nasce da experiência e da memória, o ato estético-criativo-poético de narrar lembranças subterrâneas, esmigalhadas, que sarapintam o eu e dão vazão ao trauma. As personagens femininas da obra o tempo todo representam feminilidade com altruísmo, bondade e sabedoria em seus corpos afetivos para entender que é do existir sociocultural, onde enraiza-se a raiva, que nasce a luta pela justiça, são o lado “claro” do enredo, enquanto o patriarca Esteban Trueba, que chicoteia Blanca, acerta sua esposa com um golpe que lhe arranca dentes, manipula a derrubada do governo democrata e estupra camponesas nas terras em que explora os povos originários, representa um capitalismo pós-colonial que é anticomunista e defende ferrenhamente sua rígida (e falsa) moral e estilo de vida, contra as libertações de fruição e rebelião que o resto da família procura. E assim Trueba entra em decadência, mesmo com os objetivos alcançados e uma ambição desenfreada. No fim das contas, não é a fortuna acumulada pela família que ajuda Alba a sobreviver às torturas dos militares, mas, sim, o poder simbólico de uma cultura feminina. A violência construída nas concepções de gênero, classe, cor e sexualidade, mimetizadas no discurso ficcional da obra analisada durante o período de 1904 a 1973, também defende e preserva a memória de figuras violentadas pela ditadura instaurada no Chile entre 1973 e 1990.
Em alguns momentos tenho a impressão de que já vivi isto e que já escrevi estas mesmas palavras, mas compreendo que não sou eu, mas outra mulher, que escreveu nos seus cadernos para que eu viesse a servir-me deles. Escrevo, ela escreveu, que a memória é frágil e o transito de uma vida é muito breve e sucede tudo tão depressa que não conseguimos ver a relação entre os acontecimentos, não podemos medir a consequência dos actos, acreditamos na ficção do tempo, no presente, no passado e no futuro, mas também pode ser que tudo aconteça simultaneamente, como diziam as irmãs Mora, que eram capazes de ver no espaço os espíritos de todas as épocas. Por isso, a minha avó Clara escrevia nos seus cadernos para ver as coisas na sua dimensão real e para enganar a má memória. E agora procuro o meu ódio e não consigo encontrá-lo. Sinto que se apaga na medida em que explico a mim própria a presença do coronel Garcia e de outros como ele, que compreendo o meu avô e tomo conhecimento das coisas através dos cadernos de Clara, das cartas da minha mãe, dos livros da administração de Las Tres Marias e de tantos outros documentos que estão agora sobre a mesa, ao alcance da mão. Ser-me-á muito difícil vingar todos os que têm de ser vingados, porque a minha vingança não seria mais que outra parte do mesmo ritual inexorável. Quero pensar que o meu ofício é a vida e que a minha missão não é prolongar o ódio, mas apenas encher estas páginas enquanto espero o regresso de Miguel, enquanto enterro o meu avô que descansa agora a meu lado neste quarto, enquanto aguardo que cheguem tempos melhores, gerando a criança que trago no ventre, filha de tantas violações ou talvez filha de Miguel, mas sobretudo minha filha. (ALLENDE, 1995, p. 439-440).
3 O ESCRITOR BRASILEIRO: A FUNÇÃO DE SANGRAR E FALAR O MENOS POSSÍVEL
Nas obras brasileiras de realismo mágico encontra-se um fantástico racional, psicológico, a magia fundida ao imaginário e à hesitação. No que diz respeito ao Brasil, em geral menos enfatizado no gênero do realismo mágico que os países hispânicos, apesar de também partilhar das “veias abertas da América Latina”, narrativas com elementos fantásticos são localizadas no século XIX, a exemplo da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, mas marcam também o modernismo e pós-modernismo de um desbunde lisérgico e uma tropicália ferida.
É dessa forma que a escrita clariceana é vista como “apolítica”, pois se faz protesto nas metáforas e melindres literários existencialistas, e aqui se explicita que toda obra é embebida de ideologia e política. Clarice Lispector quer transformar não apenas nossa forma de ver o mundo, mas de ser e estar no mundo. Nada é coeso e acabado. Caio Fernando Abreu então, de estilística similar, escreve o tortuoso, o imperfeito, o que está com muito custo nascendo quando se escreve. Existe uma busca desesperada por entender. Ele diz e desdiz, escreve e rascunha e apaga não apagando — fica assim, o dito e o não-dito sobrepostos como a própria memória. O texto é para o autor um órgão pulsante, corpo em permanente transformação, que pode sempre melhorar, como explica na abertura de Morangos Mofados. Além disso, as sobras dos tecidos vivos não são descartadas. Tema recorrente são também as tentativas falidas de recuperar “as lembranças espatifadas no quarto”, pois a memória é sempre esfacelada, vaga e imprestável. Com que facilidade as coisas são esquecidas, apodrecidas e murchadas.
Como os contos são narrados em primeira pessoa, eles são conduzidos pelas falas e lembranças fragmentadas dos personagens e, nesse sentido, revelam que, devido ao meio fortemente opressor enfrentado, há dificuldade de comunicação linear e objetiva de suas experiências e sentimentos. Nessa perspectiva, Abreu revela a impossibilidade de uma narração “estável” que suponha que acontecimentos como o da ditadura militar estejam sob controle na mente dos que a vivenciaram. [...] Conforme Jacques Le Goff, os esquecimentos e os silêncios da história revelam os mecanismos de manipulação da memória coletiva, preocupação esta dos indivíduos que dominaram e dominam a sociedade ao longo da história. Esses apagamentos são estabelecidos, desse modo, pelos donos do poder que promovem meios de ocultar as relações autoritárias e preconceituosas estabelecidas entre os indivíduos. Em caminho contrário, Abreu garante a elaboração de uma memória coletiva que busca a “libertação e não a servidão dos homens”, uma vez que possibilita a discussão sobre aspectos mascarados que denunciam essa situação, vista sob o ponto de vista dos oprimidos e não daquele divulgado pelos opressores. (MOZZAQUATRO, 2005).
A representação da identidade homoerótica construída por Caio Fernando Abreu, caracterizada pelo signo da marginalidade, apresenta uma estreita relação com o conceito do monstruoso. Lembra, em algum momento, a passagem de Jorge Amado em Teresa Batista Cansada de Guerra quando, no meio de uma greve de prostitutas, o poeta Castro Alves saiu do túmulo e desceu da estátua na praça para, destemidamente, defendê-las. Ou as personagens literárias e o mítico urbano em Hilda Furacão, livro escrito por Roberto Drummond. Nas personagens mulheres e travestis encontra-se o “profano feminino” inerente ao realismo mágico brasileiro. Assim como em A Casa dos Espíritos, o realismo mágico aqui não serve apenas para driblar a censura, mas é também resistência cultural. “Isso é escrever. Tira sangue com as unhas. E não importa a forma, não importa a ‘função social’, nem nada, não importa que, a princípio, seja apenas uma espécie de autoexorcismo. Mas tem que sangrar a-bun-dan-te-men-te.” (ABREU, 2005).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A leitura de narrativas de memória pode ser, no mínimo, um bom trabalho mnemônico, mesmo para aqueles que não estiveram lá, aqueles que só vieram depois, herdeiros da dor. Em vista disso, a perpetuação da memória associa-se à realidade da América Latina por esta apresentar uma história que se assenta na violência constante desde a sua conquista. Ela é a base de uma representação literária cujo enfoque tem sido, ao longo dos anos, o mapeamento do passado, nem tão distante assim, e a análise do presente vinculado ao mesmo. O discurso literário, a partir de então, passa a tratar a realidade como algo concreto, mas aproxima-se mais do que se entende como realismo social, herdado da escola marxista, e que transposto para o Cone Sul, atua como desorganizador da autoridade e na liberação das vozes alternativas das personagens comuns que vivem e sofrem as consequências de um momento de extrema convulsão social, recorrendo a uma literatura que é ao mesmo tempo de resistência ao autoritarismo e de comprometimento, como resultado das mudanças radicais ocorridas na América Hispânica. “A memória é apenas matéria-prima de um processo de mimese” (MENESES, 1995, p. 24).
A dimensão fiduciária da memória é trazida à luz com diversos pontos de debate: a) aniquilamento conveniente onde não há espaço para contradições; b) fragilidade das relações humanas e fiabilidade das testemunhas em conflito; c) provas documentais, testemunhos escritos, o contexto e objetivo de sua preservação; d) a memória enquanto tal, o campo da história enquanto ciência linear e o esquecimento como condição humana ou tortura histórica. Durante a reconstituição da experiência sensível para o mundo das ideias, entre a psicanálise das ambiguidades do esquecimento e as estratégias melindrosas da história, remonta-se a seletividade na ideologização da memória sob configurações textuais, em trabalhos de evitamento, evasão, fuga. Há, portanto, uma linha tênue entre amnistia e amnésia.
Enquanto República, Chile e Brasil viveram a experiência de serem comandados por militares, durante parte dos anos 60, 70 e 80 do século passado. Os partidos de esquerda eram considerados ilegais, e o processo de transição para a democracia foi severamente conduzido pelos militares. As memórias do horror, fragmentadas e fractalizadas, podem ser apagadas por amnistia ou por amnésia, mas também podem se perpetuar para as gerações futuras por meio da arte. Em seu discurso durante a cerimônia do Prêmio Nobel, em 1982, Gabriel García Marquéz dirá da solidão da América Latina, “uma pátria imensa de homens alucinados e mulheres históricas, cuja tenacidade sem fim se confunde com a lenda”.
Na literatura de memória, o encontro de metáforas, basilares na produção do fantástico, com vieses cotidianos, acontecimentos factuais e personagens transpassados por esta, implica-se uma gênese no tear da recordação e do extraordinário de revoltas, misandrias e rupturas. A mediação de narrativas de memória, levando em conta seus eixos históricos, geopolíticos e sociais, quando empregada pelo profissional bibliotecário com caráter disruptivo, pode se tornar justiça transicional. Destarte, justiça transicional consiste nesse processo que têm como objetivos centrais “o (re)estabelecimento do Estado de direito, o reconhecimento das violações aos direitos humanos (suas vítimas e autores) e a promoção das possibilidades de aprofundamento democrático, pela justiça, verdade, reparação, memória e reforma das instituições” (ABRÃO e GENRO, 2012, p. 33).
No conjunto de considerações envolvendo as cidades, enfatiza-se, desde o final do século passado, uma valorização do passado na paisagem e nas instituições de informação, tradicionalmente museus, arquivos e bibliotecas. A materialidade destes lugares se torna testemunho que permite aos diferentes grupos sociais envolvidos mobilizar estas memórias, geralmente legadas ao esquecimento. Estas instituições operam a um só tempo como campos discursivos, centros de interpretação e arenas públicas. Holocausto, Apartheid, o genocídio do povo palestino e as ditaduras na América Latina são exemplos de matrizes que geram uma obrigação de se prestar contas ao passado, especialmente numa urgência de assinalar o tempo, com grandes desafios teóricos, éticos e políticos. Na relação de ações do Estado e reivindicações das comunidades, espaços de memória instituem-se como forma de reparação ou ressarcimento às vítimas da violência de Estado e violações dos direitos humanos, e valorização, apropriação, usos turísticos e desapropriação são apenas algumas das consequências que podem decorrer destas ações. Assim, há controvérsias: quando memórias de trauma tornam-se um tipo de patrimônio, declara-se às vezes uma narrativa única, limitada, banalizada e mercantilizada, sem multivocalidade, reprimindo demais vozes sobre a mixórdia de certo pretérito.
Acima de tudo, conclui-se que a realidade transcende na construção do imaginário memorialístico.
REFERÊNCIAS
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