john dee: a biblioteca e o ocultismo. [parte 1]
ser uma bibliotecária bruxinha excêntrica é ESCANDALOSO!
Um dos mais ricos legados da história é a biblioteca. Nos centros religiosos de Thebes e Memphis, os sacerdotes de Ptah criaram e mantinham as primeiras coleções de obras litúrgicas e ritualísticas. Parte integral do espaço, a biblioteca era protegida pelos deuses: Thoth e Seshat. Aqui foram concebidos os primeiros hinos à Osíris, Ísis e Rá, escritos em papiro, os rolos preservados para uso futuro. Conforme Milanesi (2002, p. 7): “[...] em O Nome da Rosa, [...] emerge a figura misteriosa do bibliotecário do convento, que levava a chave de um mundo complexo e misterioso [...], no Renascimento ele surge como um guia de ajuda na caminhada por um mundo novo e aberto”.
A Biblioteca de John Dee, posterior à Gutenberg, foi considerada detentora do Renascimento inteiro, uma Renascença que retornava ao modelo da Biblioteca de Alexandria, sendo essa coleção de Dee a maior biblioteca compilada na Inglaterra elisabetana. Aqui ocorre uma mudança de práxis do bibliotecário renascentista em relação ao usuário, concatenando na filosofia atual da Ciência da Informação, sendo a biblioteconomia como se conhece hoje originária do Renascimento. Para Kessel (2014, p. 35-36):
Na Renascença, a mnemotécnica ainda persiste, os palácios da memória, teatros imaginários, tornam-se mais complexos, os lugares não são mais os da geografia sagrada (grutas, montanhas), mas a geometria sagrada, conforme descreve Frances Yates. O espaço em camadas, o lembrar como ascensão às estrelas, a transcendência.
Schulze-Feldmann e Geraerts (2019) explicam que Dee não considerava a prática de leitura um ato de recebimento passivo de informação oferecida autoritariamente pelo autor de um livro e, sim, um processo de pesquisar informações disponíveis em qualquer texto, de peneirar e filtrar o relevante do irrelevante, de digerir informação e fazer uso da mesma, o que requer um compromisso ativo com a palavra escrita, assim, Dee costumava escrever ou desenhar marginálias e outras intervenções em seus exemplares, como tesauros e ideias. Além disso, o bibliófilo classificava e catalogava seus próprios livros em diversos momentos da sua vida para prevenir (ou registrar) sua perda. Inclusive, leitores posteriores também manipularam fisicamente esses seus livros.
Os fundadores das bibliotecas renascentistas se interessavam ardentemente pelas grandes bibliotecas da Antiguidade e faziam buscas intensas para encontrar livros de seu interesse ou que pudesse aumentar ainda mais seu prestígio junto aos seus pares e súditos (BARATIN e JACOB, 2000). O Renascimento testemunhou um fortalecimento gradual do letramento ao misturar práticas de leitura individuais e coletivas com seus salões literários e circulação de revistas. Tais pontuações tratam-se de evidência tangível das práticas de leitura e usos da informação em um marco histórico-intelectual. Mas como uma biblioteca tão grandiosa em questões de acervo e prática bibliotecária pereceu na obscuridade? Quais são os vestígios ainda não encontrados sobre a bibliofilia especializada de Dee? Além disso, como seus estudos do Ocultismo fazem desta uma biblioteca ainda mais única? É preciso solucionar essas lacunas na memória de John Dee para traçar suas influências na Biblioteconomia hodierna e compreender uma história da Biblioteconomia Ocultista.
Se você achou que aqui tem as respostas, ACHOU-ERRADO-OTÁRIO! Neste e nos próximos textos, não ouso tentar responder amplamente todas essas questões, principalmente por uma infeliz escassez de fontes e meios de pesquisa sobre tal contexto e a GRANDE quantidade de informações falsas ou exageradas, mas abrem-se as portas de uma curiosidade feroz, voltando a atenção para a Ciência da Informação tendo em vista o ocultismo na história (uma história, é claro, nem um pouco decolonial, é importante enfatizar para que o leitor desatento não se perca aqui sem criticidade; mas como era interessante esse tal de mago-bibliotecário John Dee… *brilho neurodivergente nos olhos*).
Nascido em Londres em 13 de julho de 1527, John Dee informa em seu Compendious Rehearsal que possuía uma coleção belíssima de livros, "impressos e escritos antigamente, encadernados e não encadernados, ao todo cerca de 4.000, parte dos quais eram livros manuscritos. E acrescenta que "passou 40 anos em diversos lugares além-mar e na Inglaterra reunindo esses livros". Ele menciona especialmente "que quatro livros escritos, um em grego, dois em francês e um em alto-holandês, custaram 533 libras". Dee, em uma carta de Antuérpia para Sir William Cecil, posteriormente Lord Burghley, datada de 16 de fevereiro de 1563, também afirma ter comprado um livro curioso (provavelmente um manuscrito), Steganographia, de Joannes Trithemius, tão raro que "1000 coroas foram oferecidas em vão" por um exemplar.
Atraía muitos curiosos e estudiosos, uma biblioteca particular tornando-se, então, um espaço de conhecimento quase público.
E é engraçado pensar que o maior proprietário de livros no Brasil do século XVI foi, provavelmente, Rafael Olivi, italiano estabelecido em Ilhéus e dono de 27 volumes (sim, fica aí uma ideia para um próximo texto). Ah, no século XVII essa situação praticamente não se modificou.
Na tranquilidade da sua casa em Mortlake, o bibliófilo John Dee instalou uma biblioteca especialmente construída para albergar as suas coleções, bem como vários laboratórios para as suas experiências. Polímata (ou melhor, uma grande mistureba de matemática com navegação com geometria com hermetismo com astrologia com astronomia com um cabalismo numerológico doidasso vindo de um mano que estudava dezoito horas por dia na biblioteca da faculdade), Dee também foi um homem proeminente na corte de Elizabeth, aconselhou a rainha até em questões de saúde e alguns dizem que ele também foi seu espião (?). Mas suas práticas de magia chegaram a levá-lo à prisão. Em 1555, por exemplo, ainda jovem, foi preso e julgado por "cálculo" por ter traçado horóscopos da rainha Mary (a do drink Bloody Mary, essa mesmo) e da então princesa Elizabeth.
NOTA DE PESAR: É com muita tristeza que informo que o Wikipedia me informou que John Dee foi até mesmo o primeiro a utilizar o termo Império Britânico e “reafirmava as reivindicações territoriais inglesas”. Ele realmente era como uma espécie europeia de Andressa Urach e Kanye West.
Em 1564, Dee escreveu o tratado hermético Monas Hieroglyphica ("a mônada hieroglífica"), uma interpretação cabalística exaustiva de um glifo criado por ele mesmo, numa tentativa de expressar a unidade mística de toda a criação. Esse trabalho foi altamente valorizado por muitos dos contemporâneos de Dee, mas a perda da tradição oral secreta de Dee tornou o trabalho difícil de se interpretar nos dias atuais.
Em 1556, Dee apresentou à rainha Mary "uma súplica pela recuperação e preservação de escritores e monumentos antigos”, lamentando a pilhagem e a destruição debibliotecas e até sugerindo a criação de uma biblioteca nacional. Em 1583, enquanto viajava (em todos os sentidos), a população, que o execrava como "um charlatão" e “mágico maligno”, invadiu sua casa durante sua ausência e destruiu grande parte de seus móveis, coleções e biblioteca. Ao retornar para casa em 1589, ele conseguiu recuperar cerca de três quartos de seus livros, até reescrevendo o que estava irremediavelmente perdido; mas estes foram gradualmente dispersos em consequência das dificuldades financeiras em que se viu durante os últimos anos de sua vida.
Seu objetivo final era ajudar a levar adiante uma religião unificada mundial com a recuperação da ruptura das igrejas católica e protestantes e recapturar a teologia pura dos antigos. […] Tanto sua lápide quanto qualquer documento que ateste seu óbito são desconhecidos.



BIBLIOGRAFIA
BARATIN, Marc; JACOB, Christian. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000.
KESSEL, Zilda. A memória escolar no virtual: ambientes virtuais de aprendizagem (ava), lugares da memória e da cultura escolar. 2014. 166 f. Tese (Doutorado) - Curso de Educação, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014. Disponível em: https://tede2.pucsp.br/handle/handle/9785. Acesso em: 02 abr. 2025.
SCHULZE-FELDMANN, F.; GERAERTS, J. John Dee: His Library and the AOR Corpus. 2019. Disponível em: <https://archaeologyofreading.org/john-dee-his-library-and-the-aor-corpus/>. Acesso em: 20 mar. 2025.
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